É muito comum no meio acadêmico e em diálogos políticos informais entre amigos, que simpatizantes ou entusiastas do livre mercado sejam tachados de “defensores da meritocracia”. Trata-se de um exemplo perfeito da falácia do argumentum ad. nauseam, que consiste no pressuposto equivocado de que se uma afirmação é repetida diversas vezes sem ser rebatida posteriormente, ela se torna verdadeira.
“Tão duvidoso é o mérito, devido não só à sua natural obscuridade como também à vaidade de todo indivíduo, que nenhuma norma definida de conduta jamais poderia dele resultar.” – David Hume
Devemos nos atentar ao fato de que originalmente o termo meritocracia foi usado para definir uma ferramenta organizacional em uma empresa ou associação, onde os funcionários seriam remunerados de acordo com o quanto produziram, se empenhando em suas funções.
Entretanto, tal conceito é inútil quando aplicado à ordem social de mercado, pelo simples fato de que a sociedade não se estrutura por meio de dirigentes centralizados, i.e, os salários não são determinados deliberadamente por meio de uma mente racional, eles se equilibram em um certo nível de acordo com diversos fatores. Logo, entusiastas do livre mercado ou liberais, não defendem a meritocracia.
O austríaco F.A. Hayek vê de maneira desconfortável o uso do termo “economia” para se referir puramente ao mercado, já que quando surgiu na Grécia, tal palavra significava “gestão doméstica”, se referindo por exemplo a uma fazenda gerida pelo seu proprietário. Ele usa a teoria da “cataláxia” para descrever tal sistema como sendo “o ajuste mútuo de muitas economias individuais em um mercado”.
Por ser uma organização desprovida de um fim específico, o “jogo da cataláxia” envolve o conjunto de relações de troca entre os indivíduos que é ordenada por regras que visam orientar e conduzir os limites da conduta de cada agente, sem nunca realizar fins particulares.
Sendo assim, ideias como “é só se esforçar para se ascender financeiramente” ou que “numa economia livre todos terão exatamente as mesmas oportunidades e prosperidade” não passa de um espantalho.
Todos deveriam ser recompensados pelo seu empenho e dedicação
É desejável que as pessoas sejam recompensadas pelo seu empenho e dedicação, mas na realidade, as coisas não funcionam desta maneira.
Todos os seres humanos possuem atributos diferentes, uns nascem com maior aptidão para desempenhar determinadas tarefas, enquanto outros possuem extrema dificuldade para assumir certas funções. Este não é um princípio injusto, simplesmente por não ter sido definido por ninguém.
O que vai determinar o sucesso de um indivíduo no mercado é o que ele produz de valor para a sociedade, o quanto o bem ou serviço por ele ofertado supre as necessidades das pessoas (necessidade aqui não se refere restritivamente à subsistência, mas nos desejos subjetivos em geral).
Um cantor famoso ganha mais que um professor, não porque se esforçou mais ou devido ao seu talento, mas porque ele oferece algo que é de interesse de muitas pessoas, há uma maior demanda pelas suas apresentações.
Da mesma forma que a diferença salarial entre dois cantores do mesmo gênero musical não é determinada pela qualidade de cada um, mas pelo quanto as pessoas querem pagar por cada show.
Meritocracia segundo Marx
Para a “meritocracia”, assim como é normalmente entendida, constituir a base estrutural da ordem econômica moderna, o valor dos bens obrigatoriamente deveria ser determinado pelo “trabalho socialmente necessário”, como fundamenta Karl Marx.
Como aprendemos no ensino médio, o autor propõe em sua obra “O Capital” a tese da mais-valia, que seria a diferença entre o valor final da mercadoria produzida e a soma do valor dos fatores de produção (mão de obra, máquinas, instalações, etc), que seria a base do lucro no sistema capitalista.
Esta tese, no entanto, ignora o fato de que o valor final sofre influências de determinados fatores externos, a demanda pelo produto, as circunstâncias de concorrência, valor da moeda, adversidades naturais, dentre outros.
O esforço poderia ser colocado como o elemento qualificador dos salários individuais, somente se estes fossem determinados intencionalmente, de maneira dirigida, ou se o valor final da mercadoria fosse determinado unicamente pelo custo de produção, retirando-se parte do que o trabalhador teria “integralmente produzido”.
Na economia, chama-se de “feedback negativo” o efeito indesejável que certas ações empresarias tem sobre outros indivíduos. Em outras palavras, a concorrência traz alguns malefícios para interesses particulares, mas oferece os maiores benefícios para os consumidores.
É nesta dinâmica que se apresenta a natureza do empreendedorismo: um jogo que implica aos seus participantes o respeito imperativo às regras que orientam suas respectivas condutas, mas jamais determinarão os vencedores.
Talvez seja justamente por causa da incerteza e mudanças constantes, ascensões e quedas, que as pessoas reivindiquem ao governo a garantia de “direitos sociais” ou da “famosa” justiça social.
Hayek sobre a justiça social
Hayek, por um viés antropológico, demonstra a concepção de que a reivindicação da tal “justiça social” se opôs ao sentido original:
Poder-se-ia esperar encontrar alguma ajuda, na busca do significado da expressão ‘justiça social’, pelo exame do significado do atributo ‘social’; mas tal tentativa logo desemboca num atoleiro de confusão quase tão grande quanto o que cerca o próprio conceito de ‘justiça social’.
Em sua origem, o termo ‘social’ tinha, obviamente, significado claro (análogo a formações como ‘nacional’, ‘tribal’ ou ‘organizacional’), a saber, o de pertencente a ou próprio da estrutura e do funcionamento da sociedade. Neste sentido, a justiça é evidentemente um fenômeno social, e a adição de ‘social’ ao substantivo, um pleonasmo, tal como se falássemos de ‘linguagem social’ – embora em usos iniciais ocasionais ela possa ter pretendido distinguir as concepções dominantes de justiça daquela esposada por pessoas ou grupos específicos.
Mas a expressão ‘justiça social’, tal como empregada hoje, não é social no sentido em que se fala em ‘normas sociais’, i. e., algo que se desenvolveu como uma prática de ação individual no curso da evolução social, não é um produto da sociedade ou de um processo social, mas uma concepção que se pretende impor à sociedade. Foi por se referir ao conjunto da sociedade, ou aos interesses de todos os seus membros, que o termo ‘social’ adquiriu gradualmente um significado preponderante de aprovação moral.
Quando caiu no uso geral, durante a segunda metade do século passado, pretendia transmitir um apelo às classes ainda dominantes para quase preocupassem mais com o bem-estar dos pobres, muito mais numerosos, cujos interesses não tinham recebido a devida consideração. A ‘questão social’ foi proposta como um apelo à consciência das classes altas para que reconhecessem sua responsabilidade pelo bem-estar dos setores “desprezados da sociedade, cujas vozes tinham tido, até então pouco peso nos conselhos de governo. A ‘política social’ (ou Social-politik, na língua do país que então liderava o movimento) tornou-se a ordem do dia, a principal preocupação de todas as pessoas progressistas e bondosas, e ‘social’ passou, cada vez mais, a substituir termos como ‘ético’, ou simplesmente ‘bom’.
É evidente que o apelo de algumas pessoas por benefícios governamentais acompanhe o sentimento de obrigação moral quanto aos menos favorecidos, que por sua vez surge das micro-relações humanas. Porém, tal obrigação se dissolve em uma sociedade grande e complexa, onde as pessoas interagem sem sequer ter alguma ciência do interesse alheio presente nas trocas comerciais. Isso não exclui a possibilidade de que o governo disponha uma renda mínima para aqueles que não possam adquiri-la através do mercado. Inclusive tal ideia é defendida por muitos liberais, como o economista da Escola de Chicago, Milton Friedman, criador do famoso “sistema de vouchers”.
Nas palavras de Hayek,
“Desde que tenha alcançado certo nível de prosperidade, um sistema baseado nas forças ordenadoras espontâneas do mercado não é também, de maneira nenhuma, incompatível com o fornecimento pelo governo, à margem do mercado, de alguma garantia contra a pobreza extrema.
Mas a tentativa de assegurar a cada pessoa o que se julga que merece, impondo a todos um sistema de fins concretos comuns em direção ao qual seus esforços são dirigidos pela autoridade, como pretende fazer o socialismo, representaria um retrocesso que nos privaria da utilização do conhecimento e das aspirações de milhões de homens, e, com isso, das vantagens de uma civilização livre.”
Conclusão
Enfim, ser liberal não implica em acreditar que “é só se esforçar para se conquistar os seus objetivos”, mas que a complexidade dos problemas humanos demanda um constante processo evolutivo de criação, baseado em tentativa e erro, visto que já se mostraram irresolúveis por meio de utopias idealizadas baseadas em controle autocrático.
Tulio Andrade participou do Programa de Coordenadores do Students For Liberty.
Este artigo não necessariamente representa a opinião do SFLB. O SFLB tem o compromisso de ampliar as discussões sobre a liberdade, representando uma miríade de opiniões.