Este artigo é em homenagem a Data especial comemorada hoje no Rio Grande do Sul, 20 de Setembro, pela qual representa o povo gaúcho em sua luta histórica contra a tirania estatal, nesse caso, instrumentalizada pela Revolução Farroupilha.
Ao longo do texto, vamos deixar versos do Hino Riograndense, de músicas tradicionalistas e de um poema gaúcho, a fim de demonstrar o quão enraizado está o orgulho pela história e pela tradição, por parte do povo sul-rio-grandense, principalmente o seu apreço imensurável pela Liberdade.
Foi o 20 de Setembro
O precursor da liberdade
Mostremos valor, constância
Nesta ímpia e injusta guerra
(…)
Mas não basta, pra ser livre
Ser forte, aguerrido e bravo
Povo que não tem virtude
Acaba por ser escravo. [1]
Em 20 de setembro de 1835, tinha início a Guerra dos Farrapos, também conhecida como Revolução Farroupilha, uma guerra que durou 10 anos e, até hoje, tem a sua data de começo altamente comemorada no Rio Grande do Sul, sendo, inclusive, feriado estadual.
Entre os gaúchos mais tradicionalistas, é quase unânime o louvor pelos maragatos — sulistas federalistas — que lutaram contra os mercenários do Império brasileiro. Inspirados na liberdade almejada pelos estancieiros, todos os anos os gaúchos organizam desfiles, festas e as mais diversas celebrações para comemorar, com a dignidade e a grandeza que lhe é devida, a Semana Farroupilha.
Mas, afinal, qual é a história e os motivos no palco desse imenso orgulho gaúcho e seu inegociável apreço pela liberdade?
Peleando em favor da pampa
A pilcha sovada em tiras
Marcando fronteira provou lealdade
Livrando os trastes da campa
Na ventania rusguenta
Pranchando adaga a gritos de liberdade
Vento, cavalo, peão
Marca de cascos no chão
Fronteira sem marcação
Nosso ideal meu rincão
Em noites em que o minuano assusta os cavalos
Escuto o tropel dos centauros posteiros
Almas charruas cavalgam coxilhas
Guardando as fronteiras do sul brasileiro. [2]
A Revolução Farroupilha
Estamos no ano de 1835, e o cenário político brasileiro é altamente instável. Faz 13 (treze) anos que somos um país independente de Portugal, e Dom Pedro I, o então Imperador do Brasil após a Independência, havia abdicado de seu trono há 4 anos. Após isso, pelo fato de seu filho herdeiro, o futuro D. Pedro II, ainda ser muito jovem, o país é governado transitoriamente pela Regência Trina Permanente, mas que logo passa ao comando de Diogo Antônio Feijó — opositor político de José Bonifácio de Andrada.
No território, ocorrem demais acontecimentos além da Revolução Farroupilha, como a Cabanagem e a Revolta dos Malês, que também contribuem para prejudicar a estabilidade política do Império. [3]
Na época, os gaúchos, os uruguaios e os argentinos qualificavam-se pela produção do Charque (carne salgada seca ao sol) — sendo o principal produto fornecido pela Província de São Pedro, hoje conhecida como Rio Grande do Sul — , vendendo-o para o resto do Brasil. [4] Era produzido pelos charqueadores, que compravam a carne dos estancieiros gaúchos. Porém, os argentinos e os uruguaios também eram grandes produtores, graças às suas condições geográficas semelhantes ao território gaúcho.
Em determinado momento, o governo imperial começou a adotar uma política fiscal exacerbada em relação ao Charque, prejudicando sua comercialização. Ou seja, o principal produto vendido pelos gaúchos passou a ser drasticamente taxado, enquanto que o Charque estrangeiro recebia tratamento suavizado, e chegava ao consumidor com um preço drasticamente menor. [5] O fato é que o Império conhecia a insatisfação dos gaúchos em relação a sua figura e, principalmente, a objeção desses pela ideia de submeter-se ao despotismo silenciosamente. Então, buscando enfraquecer a Região – ainda mais quando teve conhecimento de que os ideias republicanos e federalistas começaram a circular em seu território –, o Império deu início às políticas fiscais mencionadas.
Esse fato deu a estrutura central para a fúria dos gaúchos, contudo, igualmente sopesado pelo desejo desse povo pela busca de maior autonomia da Região, buscando evitar ficar à mercê das vontades tirânicas do Império, que, visando a dominação de todos os territórios do Brasil, adotou uma ampla centralização governamental, arquitetado pelas Regências Trinas.
Oh, meu Rio Grande
De encantos mil
Disposto a tudo pelo Brasil
(…)
Te quero tanto, torrão gaúcho
Morrer por ti me dou o luxo
(…)
Nas minhas veias escorre
O sangue herói de farrapo
Deus é gaúcho
De espora e mango
Foi maragato ou foi chimango
Querência amada
Meu céu de anil
Este Rio Grande gigante
Mais uma estrela brilhante
Na bandeira do Brasil. [6]
Toda essa situação levou ao estouro de uma Revolução, que foi a mais longa das revoltas regenciais, e, além disso, a que obteve a maior possibilidade de efetivamente gerar uma separação de um território do Império brasileiro. Tendo 10 anos de duração, conseguiu, em setembro de 1836, proclamar a independência da República de Piratini, território que hoje é o Rio Grande do Sul, e, em julho de 1839, a independência da República Juliana, onde fica Santa Catarina.
Com o passar dos anos, e com a consequente nomeação de Luís Alves de Lima e Silva, o futuro Duque de Caxias — que ficou para a história como um grande pacifista — , para representar o governo e liderar as tropas imperiais, a Revolta foi perdendo força, até se encerrar por completo com a assinatura do Tratado de Poncho Verde, em 1845. Dentre os principais pontos que levaram à Paz de Poncho Verde, destacam-se: taxação do charque estrangeiro em 25%; anistia para os revolucionários; promessa de liberdade para a província escolher seu próprio Presidente; e alforria para os escravos que lutaram ao lado dos Farrapos. As duas últimas medidas não foram cumpridas pelo governo imperial.
Vejo no lume da nossa Chama Crioula
O mesmo brilho que guiou os ancestrais,
Fogo de luta, valentia e liberdade,
Pela conquista de direitos mais iguais.
Chama que acende nosso orgulho de gaúcho
(…)
Louvando os feitos dos heróis idealistas.
Bandeira hasteada sobre a luz da chama ardente
Reverenciando a saga revolucionária,
Guardando a glória dos farrapos que tombaram
Doando a vida pela causa libertária! [7]
Povo que não tem virtude, acaba por ser escravo
No decorrer da década de 2010, mormente a partir dos anos de 2016 e 2017, surgiram manifestações estudantis, principalmente em cerimônias de colação de grau acadêmico, contra o hino do Rio Grande do Sul. Nas oportunidades, os alunos negros recusavam-se a ficar de pé para a execução do Hino, sob a alegação de que havia em seu interior a institucionalização do racismo, em razão do verso que dá nome a este capítulo.
Nessa conjuntura dos fatos, o entendimento dos estudantes relacionava o contexto do Hino como referência direta ao período de escravidão dos negros no Brasil — vigorado até a Lei do Ventre Livre, em 1871. Contudo, acontece que existe um equívoco fundamental de interpretação: a canção, ao se referir a escravos, dimensionou o sentido de “escravidão” em lato sensu, isto é: escravo no sentido de ser submisso, dependente, vassalo de outro povo; não tendo, por isso, qualquer relação, nesse caso, com a escravidão dos negros. Ademais, conceder essa interpretação ao Hino Riograndense é desconhecer a história dos gaúchos e de seus ideais tradicionalmente defendidos. Isso porque, sempre lutou contra a tirania estatal e qualquer tipo de subordinação de seu povo, inclusive da escravidão dos negros durante a Revolução Farroupilha, como mencionado.
Ter uma história de luta contra o tiranismo significa não se curvar diante de qualquer espécie de arbitrariedade, de ditadura ou de despotismo; tanto é verdade isso que o Hino Riograndense, originariamente, concedeu espaço para um trecho que visada a repudiar diretamente a tirania, qual seja:
“Entre nós reviva Atenas
para assombro dos tiranos
Sejamos gregos na glória
e na virtude, romanos”
Esse trecho vigorou de 1933 até 1966, quando, em pleno regime militar, acabou por ser retirado. Alguns historiadores tradicionalistas julgam que a Ditadura desse período não teve influência em sua retirada, argumentando que ocorreu em razão de ser um verso deslocado, que menciona inclusive outro povo, sem relação com os gaúchos; contudo, já outros a consideram como elemento chave para sua supressão— a partir do Decreto Estadual 5.213, de 05/01/1966 — , buscando evitar uma possível tensão com o governo dos militares, visto que a crítica se refletia como uma luva ao cenário político da época, em que pese elaborada mesmo antes de sua existência; ratificando que a virtude dos gaúchos nunca teve inclinação a qualquer regime arbitrário.
Associar o Hino do povo que mais lutou pela liberdade a uma defesa institucional do racismo é rebaixar a história dos gaúchos a sabores ideológicos, negligenciando todas as suas contribuições para a semeação de uma cultura que visava a paz, a harmonia, e a liberdade; e que hoje nós colhemos. O Lema da Guerra dos Farrapos e, posteriormente, da República Rio-Grandense, foi a adaptação — a sua realidade cultural — do histórico marco da Revolução Francesa, vociferando aos quatro cantos do Brasil: Liberdade, Igualdade e Humanidade! Esses ideais encontram-se até hoje petrificados em seu Brasão, para que os gaúchos — como ensina o Hino — nunca olvidem as suas virtudes, esquecendo-se de sua própria história.
Como que um povo que lutou pela igualdade de direitos e deveres entre os seus semelhantes, buscando explicitamente dar cabo a escravidão dos negros em seu território, poderia ter hoje uma cultura de institucionalização do racismo?
Por derradeiro, sobre esse contexto, menciona-se que o poema (que deu origem ao Hino) foi composto durante o transcorrer da Revolução Farroupilha, e o verso — ora mal interpretado — referiu-se ao povo gaúcho como não complacente a ideia de ser escravo das vontades tirânicas do governo imperial. [8] Eventualmente, os farrapos, pode-se dizer, não obtiveram o sucesso almejado em sua batalha, tal qual os escravos na Revolta de Malês, contudo, tal fato lapidou sua impugnação à ideia de servidão a um poder centralizado — esse é o verdadeiro sentido da menção a “escravo”.
A República Rio-Grandense
Como nota-se no interior do Brasão dos gaúchos, o Rio Grande do Sul autoproclamou-se uma República — ideal que há muito tempo transitava pelo seu povo — em meio a Revolução Farroupilha, em 11 de setembro de 1836. Na oportunidade, após a vitória dos farrapos na Batalha do Seival, o General Antônio de Sousa Neto, em frente a seus pares, em um aclamado texto, proferiu:
“Bravos companheiros da 1ª Brigada de Cavalaria!
(…)
São sem número as injustiças feitas pelo Governo. Seu despotismo é o mais atroz. E sofreremos calados tanta infâmia? Não, nossos companheiros, os rio-grandenses, estão dispostos, como nós, a não sofrer por mais tempo a prepotência de um governo tirânico, arbitrário e cruel, como o atual. Em todos os ângulos da província não soa outro eco que o de independência, república, liberdade ou morte. Este eco, majestoso, que tão constantemente repetis, como uma parte deste solo de homens livres, me faz declarar que proclamemos a nossa independência provincial, para o que nos dão bastante direito nossos trabalhos pela liberdade, e o triunfo que ontem obtivemos, sobre esses miseráveis escravos do poder absoluto.” [9]
Em 1843, em Alegrete, após sete anos de Independência, os gaúchos promulgaram a sua Constituição, uma Carta a frente do seu tempo, com 241 artigos, insculpindo-se nos ideais republicanos, democráticos e iluministas, consolidando a liberdade de seu povo, e a igualdade de seus semelhantes perante o império da Lei. Em seu preâmbulo, declarava:
“(…) nós, representantes do povo da República rio-grandense, [estabelecemos] uma forma de governo adequada a seus costumes, situação e circunstâncias, que proteja com toda a eficácia a vida, a honra, a liberdade, a segurança individual, a propriedade, e a igualdade, bases essenciais dos direitos do homem; desejando satisfazer a vontade de nossos cidadãos, firmar a justiça, promover a felicidade pública e assegurar o gozo de todos estes bens para nós e nossa posteridade.” [10]
A República Rio-Grandense teve seu término em 01 de março de 1845, através do supramencionado Tratado de Poncho Verde, retornando o seu Território como pertencente ao Império do Brasil.
Meritíssimo Juiz
Peço vênia neste instante,
Porque reputo importante fazer a observação;
– A lei existe pra todos –
É um princípio de Direito.
A essência desse conceito é a Carta que determina;
(…)
– Normas, valores, padrões e noções de liberdade.
É aí que me refiro,
Como um gaúcho liberto,
(…)
Abaixo os oligopólios
E a formação de cartéis,
Embrólios e “menestréis”, e o vil corporativismo.[11]
Alguns buscam minimizar todos os fatos narrados até aqui, argumentando que a Revolução Farroupilha foi, na verdade, uma narrativa apenas para fortalecer os interesses da burguesia sul-rio-grandense. Os que sustentam tal argumentação — principalmente os que na terra gaúcha nasceram — nunca entenderão que a liberdade é independente de qualquer cobiça acessória, e preferem defender a tirania de um governo e seus atos autoritários, politizando a história, à reconhecer que a tradição dos gaúchos confunde-se com a permanente busca pela liberdade, pelos princípios democráticos, pelos ideais de um estado republicano, e pela defesa de um arcabouço legal fundado na igualdade de seus semelhantes, e tendo a justiça como a aurora de toda e qualquer ação governamental.
O mate aquecia a prosa passando de mão em mão
Proseava sobre ideais da mais pura tradição
(…)
Contou causo missioneiro de nossa revolução
A voz sonava em sua boca, o Rio Grande em seu coração
(…)
Contra a fumaça de um braseiro foi mostrando
A nossa estampa farrapa em guerras peleando
Na fé de um povo aguerrido, bravo e sem luxo
Conquistamos liberdade porque Deus nasceu gaúcho. [12]
REFERÊNCIAS:
[1] Hino do Rio Grande do Sul.
[2] Música “Gritos de Liberdade”, do Grupo Rodeio.
[3] RODRIGUES, Pedro Eurico. Revoltas no Período Regencial. Publicado pelo Brasil Escola. Disponível em: https://www.infoescola.com/historia/revoltas-do-periodo-regencial/. Acesso em: 30 ago 2020.
[4] [5] SILVA, Daniel Neves. Guerra dos Farrapos: causa, resumo e fim. Publicado pelo Brasil Escola. Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/historiab/revolucao-farroupilha.htm. Acesso em: 02 set 2020.
[6] Música “Querência Amada”, de Teixeirinha (Vítor Mateus Teixeira).
[7] Música “Na Chama da Tradição” (tema dos Festejos Farroupilhas 2017), feito pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho (letra e música: Érlon Péricles; interpretação: Érlon Péricles e Cristiano Quevedo; violões e contrabaixo: Guilherme Castilhos).
[8] MOVIMENTO TRADICIONALISTA GAÚCHO. Saiba como foi criado o Hino do Rio Grande do Sul. Publicado pelo Atmosfera Online. Disponível em: https://atmosferaonline.com.br/saiba-como-foi-criado-o-hino-do-rio-grande-do-sul/#:~:text=A%20hist%C3%B3ria%20real%20do%20Hino,a%20sua%20banda%20de%20m%C3%BAsica.&text=A%20melodia%20composta%20por%20Mendanha%20era%20apenas%20musicada. Acesso em: 12 set de 2020.
[9] Campo dos Menezes, 11 de setembro de 1836 — Antônio de Sousa Neto, coronel-comandante da 1ª brigada.
[10] Tu podes acessar a íntegra da Carta Constitucional da República Rio-Grandense através desse link.
[11] Poema “Carta Aberta a um Magistrado”, de Sebastião Teixeira Côrrea.
[12] Música “Deus Gaúcho”, do Grupo Rodeio.
MATEUS HENRIQUE SCHOENHERR:
É acadêmico de Direito na Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC/RS), onde também desenvolve pesquisas na área do “Constitucionalismo Contemporâneo”. É redator de artigos no Students For Liberty Brasil (SFLB), e Head da Equipe de Redação Textual do grupo Fronteiras Livres.
ARTHUR MARTINS NASCIMENTO
É acadêmico de Direito na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM/RS), sendo também pesquisador sobre Direito Penal e Jusnaturalismo. É Coordenador Local pelo Students For Liberty Brazil (SFLB), membro da Equipe de Redação Textual do grupo Fronteiras Livres, Coordenador de Fundraising do Clube Farroupilha, e embaixador da liberdade pelo programa LibertaRS.
Artigo disponível também no Blog do Grupo Fronteiras Livres.
Este artigo não necessariamente representa a opinião do SFLB. O SFLB tem o compromisso de ampliar as discussões sobre a liberdade, representando uma miríade de opiniões. Se você é um estudante interessado em apresentar sua perspectiva neste blog, envie um email para [email protected] ou [email protected]