O universo da Terra-Média criada por Tolkien possui uma profunda filosofia não apenas religiosa, sentimental, mas também política.
Atenção: esse artigo contém spoilers sobre o enredo de Senhor dos Anéis
Desde o começo do mundo, o Deus desta mitologia não faz nenhuma interferência na história do universo desde sua criação, deixando os deuses menores, chamados de Ainur e mais tarde divididos em duas categorias dentro da Terra-Média, sendo chamados os mais fortes de Valar e os segundos sendo como se fossem seus ajudantes de Maiar.
A ordem espontânea
É possível ver toda a ordem espontânea sendo desenvolvida nessa história, quando chegam os filhos de Iluvatar, o Deus deste universo, no mundo, eles possuem livre arbítrio desde o começo, nunca foram forçados a obedecerem os Poderes sem sua vontade, apenas no caso de Melkor que age neste escopo a tentar governar a todos com sua tirania e ódio contra os Valar.
Podemos começar falando sobre as associações entre os reinos e seus cidadãos, desde sua construção e como os personagens agem são puramente por seu próprio desejo, podendo os indivíduos deixar seu grupo para juntar-se a outro, eles eram livres de acordo com a lei local, a qual eles podiam tanto aceitar se tornando súdito de determinado reino ou não e acabar por partir, os reis neste caso podemos falar que eram como se fossem líderes naturais, podendo também perder seus poderes, e sempre respeitando a lei natural e sua cultura particular.
Ausência de leis positivas
Raramente podemos ver exemplos de leis positivas neste enredo, e geralmente envolve a proteção de sua nação contra as forças malignas. Não podemos confundir aqui com Estado a nação, pois uma vez que a nação se impõe pela força sobre o indivíduo nestes reinos e nações em específico como ficou claro acima, isso é gerado pela livre interação dos personagens no desenvolvimento dos acontecimentos.
Há clara divisão de trabalho neste contexto e não apenas entre as diferentes raças, de elfos, anões, homens, e os Poderes do mundo, mas cada personagem tem seu papel no desenrolar das coisas e sua cooperação, um aprende com o outro e vice versa.
Tolkien e Hayek
Podemos claramente ver o que Hayek definiu em seu artigo, The Use knowledge in the Society, em que cada indivíduo e grupo possui certos conhecimentos únicos e sabem usá-los da melhor forma possível através da dispersão do conhecimento.
Agora vendo o que acontece com Melkor quando tenta impor pela força sua vontade contra a ordem espontânea criada pela livre interação dos agentes nesta trama, é possível o começo de guerras e destruição.
Ele acaba por criar exércitos para conquista e dominação dos povos livres. Quando não através de guerra, tenta usar de demagogia e promessas vazias para conquistar os corações dos seres e acabar por dominá-los, algo similar ao que ocorre hoje com os políticos tentando corromper e comprar o seu próprio povo para chegar ao poder.
O Anel de Sauron
No final Melkor perde e seu vassalo toma seu lugar na criação de guerras e maldades. Este novo ser é Sauron, o podemos ver que sua criação para conquistar o poder é através de um anel mágico, podemos associá-lo ao Estado moderno, pois ele é usado para distorcer as mentes e subjugá-las a seu próprio desejo, podemos até ver sua famosa frase inscrita no anel “Um Anel para governá-los, um Anel para encontrá-los, um Anel para todos trazer e na escuridão aprisioná-los”.
Usando tal instrumento que muito mais que apenas intimidação, mas para corromper e distorcer os fatos e os desejos de todos os seres, com suas falsa ilusões que poderá fazer a todos felizes se tiver o poder, podendo planejar uma vida boa e confortável, levando assim a uma ditadura cruel de um espírito cruel.
Anarquismo de mercado
Com tudo isso podemos também ver a clara inclinação do professor Tolkien para o anarquismo de mercado, pois uma vez em suas próprias cartas ele diz:
“My political opinions lean more and more to Anarchy (philosophically understood, meaning abolition of control not whiskered men with bombs) — or to ‘unconstitutional’ Monarchy. I would arrest anybody who uses the word State (in any sense other than the inanimate realm of England and it’s inhabitants, a thing that has neither power, rights nor mind); and after a chance of recantations, execute them if they remained obstinate!”.
J.R.R. Tolkien
Pode-se ver com clareza de detalhes as teorias da chamada Escola Austríaca de pensamento econômico neste contexto, que advoga por uma sociedade livre, moral e eticamente certa, na qual nenhum homem possui direitos sobre a propriedade de outro homem.
Livros como “A Anatomia do Estado” de Murray Rothbard explicitam essa filosofia e os problemas que o Estado cria, levantando questões como o porquê não devemos também confiar no aparelho estatal.
A sociedade ideal para Tolkien
Voltando agora aos trabalhos do professor Tolkien podemos ver o que seria para ele uma sociedade ideal com divisão do trabalho e o conhecimento sendo disperso, sem uso da violência ou tentar criar um plano central a todos.
Isso fica claro no diálogo entre Frodo e Gandalf, no Senhor dos Anéis, onde Frodo oferece o Anel ao Gandalf “Não me tente! Pois não quero ficar como o próprio Senhor do Escuro. Mas o caminho do Anel até meu coração é através da piedade, piedade pela fraqueza e pelo desejo de ter forças para fazer o bem”.
Podemos ver de outro modo também esta citação através da frase de Hayek em seu livro Arrogância Fatal “A tarefa mais curiosa da economia é demonstrar aos homens quão pouco eles sabem sobre aquilo que imaginam poder planejar”.
Mesmo desejando o bem e o que em nossa concepção seria bom e desejável nem para todos seriam assim, uma vez que não sabemos nada a respeito dos desejos individuais das outras pessoas.
Podemos tirar daí muitas lições contra o uso da coerção para atingir determinadas metas, a importância do livre arbítrio, e que não importa que mesmo sendo um grande espírito como nesta história Gandalf é, não pode a todos governar mesmo com suas boas intenções estaria causando sofrimento, então até mesmos os sábios podem falhar.
Como a história termina
A história termina com o Anel sendo destruído pela maneira mais inusitada possível. O Anel corrompe o coração do Frodo que a beira da Montanha da Perdição desiste de destruí-lo e a criatura que ao tentar salvar o objeto que tanto ama e odeia ao mesmo tempo acaba por levar ao derradeiro fim, tanto seu como do Anel.
Podemos ver uma perspectiva bastante Lockeana neste ponto em que uma criatura nasce como uma folha em branca, não é totalmente má nem boa, comete erros e acertos, e às vezes até de maneira não proposital como no caso de Gollum ao destruir o Anel.
Vendo então toda a evolução de que com Melkor a imposição de sua vontade era através de força e destruição, intermináveis guerras sangrentas e cruéis ocorrem até sua queda e a ascensão de Sauron com um instrumento de dominação para corromper os corações dos indivíduos e de suas boa intenções trazer apenas desgraça e sofrimento podemos ver claramente a evolução desde as monarquias absolutistas e tiranias desde a antiguidade até o atual Estado moderno.
Para finalizar não tem-se intenção de diminuir o trabalho do professor Tolkien, que eu tenho um profundo respeito e admiração, a intenção deste artigo é apenas mortar uma diferente interpretação de sua grande mitologia.
Fontes:
J.R.R Tolkien; The Letters of J.R.R Tolkien.
J.R.R Tolkien; O Silmarillion,
J.R.R Tolkien; O Senhor dos Anéis
Frederich August von Hayek; The Use of Knowledge in Society.
Frederich August von Hayek; Arrogancia Fatal
John Locke; Segundo Tratado sobre o Governo
Este artigo foi escrito por Patrick Pedro Garcia, coordenador local do SFLB, estudante de economia, curioso e ávido leitor de Tolkien.
Este artigo não necessariamente representa a opinião do SFLB. O SFLB tem o compromisso de ampliar as discussões sobre a liberdade, representando uma miríade de opiniões.